"Como vai ficar a cabeça das crianças?"


"- Tá difícil arrumar homem, não dá nem pra exigir muito!
- Ainda mais agora que eles 'tão' ficando junto.
- Chegou ao ponto dos homens casarem uns com os outros, acredita nisso?  Como vai ficar a cabeça das crianças? Como elas vão saber o que é certo e errado?"

Três mulheres. Duas senhoras e uma jovem. Nem se conheciam, presumo eu. Começaram a conversar na longa fila de mais de uma hora que enfrentei hoje. Até que entre um papo e outro, fala mal disso, fala mal daquilo, o "absurdo"! E, meu Deus, como vai ficar a cabeça das crianças?

Dei voltas comigo mesma, pensei nos meus futuros filhos, coitados, afetados por imagens tão fortes que verão nas ruas. Concluí: pensei que tínhamos com o que nos preocuparmos. Eu pensei que precisávamos ensinar às nossas crianças que uma menina cheia de vida morrer queimada em um ônibus é crime, merece todas manifestações possíveis, que esse é o real poder negativos de homens juntos, criminalmente falando. Eu pensei que precisávamos mostrar a elas a diferença entre amar e odiar, entre respeitar e julgar. Estive enganada todo esse tempo? Quero acreditar que não.

O diálogo acima me levou a possíveis cenas do início do século passado. Mas não, era real demais para eu me manter concentrada na leitura do meu livro. Estava aos risos por dentro com aquela conversa que começou feminista e terminou preconceituosa. Não se pode amar, pensei. Não se pode dar as mãos. Não se pode escancarar o "errado" aos olhos das pobres e indefesas crianças. Afinal, vai que é contagioso? Melhor não arriscar.

O que não sabem aquelas três mulheres é que até crescermos nós somos virgens de preconceitos. Somos livre, puros. Crescemos e tudo estraga. Se fôssemos crianças para sempre, os homens poderiam casarem uns com os outros, sim, sem ofender ou causar transtornos.  O problema é que nos deixamos crescer e endurecer demais. Aí o amor vai embora, o respeito vai embora, a coisa de cada-um-cuida-da-sua-vida vai embora.

O fato mais curioso da história? A mulher da terceira fala era negra. A sua dor histórica não lhe ensinou nada. Esqueceu-se de que num período não tão distante da história ela não estaria naquela fila, mas limpando o chão. Estaria trancada em alguma sala cozinhando. Estaria em um campo de concentração nazista. Estaria, talvez, morta. E tudo isso por quê? Porque alguém precisava ensinar às crianças o que é certo ou errado, claro. Pensando isso, imaginei o seguinte diálogo entre dois senhores da alta sociedade em outros séculos do Brasil:

"- Está cada vez mais difícil conseguir negros bons para trazer da África.
- E agora ainda acham que tem direito pra lá e pra cá!
- Acreditam que eles querem ser livres igual a nós? O que vão pensar as nossas crianças ao crescerem ao lado deles? Quem vai mostrar o que é certo ou errado?"

Pronto. Uma realidade tão ignorante quanto a outra. E não tenho dúvidas de que antes de abolirem a escravidão no país, essa conversa foi verídica. Ainda bem que salvaram os negros. Ainda bem que, hoje, sua pele se mistura com a nossa e somos todos formados do mesmo sangue, venha ele de onde vier. E as nossas crianças? Elas devem achar lindo encontrar uma cor diferente da sua, como se fosse mágica. Ninguém precisou salvá-las de se "contaminarem" e estão por aí, misturadas, livres de amarras dos pré-conceitos sociais.

E quando culpam Deus, então? "Não foi assim que Ele criou o mundo." Ah, Hitler também achava, certamente. Se um dia ninguém tivesse defendido os negros, o que seria deles hoje? Se um dia ninguém defender o amor nas suas mais diferentes variedades, o que será dele amanhã? O que será de nós, intolerantes e andantes como cavalos que não conseguem enxergar tudo ao seu redor?

Eu pensava até essa manhã que vivíamos grandes caos públicos para serem discutidos em filas de longa espera. Elas não falaram em momento algum sobre a tragédia de ontem no jornal. Elas não citaram o descaso com a saúde. Não comentaram sobre a violência. O Brasil vai bem, obrigada. E não é ser "chato" ou "careta", é estar atento.

 Acreditava que éramos livres, cada um de nós. Vejo que somos tão antigos quanto os antigos, pois eles ao menos estavam de acordo com o seu tempo, e tão escravos da sociedade quanto os negros um dia foram. Nós estamos perdidos em uma cápsula de ignorância que ainda não se encontrou no espaço. Nós estamos perdidos de nós, achando que conceituar "certo" e "errado" é salvar o futuro.

Pobres homens que dão as mãos a outros homens. Pobres homens que amam. Estão vivendo no planeta errado e não possuem saída.

E as crianças?  Estão fadadas à ignorância, mas eu quero imaginar que elas, sim, tem saída. Se não acharem a porta, que busquem a janela, que saiam desse tempo antes que amar dê cadeia e matar dê liberdade.

Como consideração final, quero dizer que tinha outro texto pronto para hoje, mas esse me chamou. Senti que ele precisava de mim tanto quanto nós, todos nós, precisamos dele.
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Autor: Camila Costa

Dizem que "essa guria tem uma caneta no lugar do coração". É gaúcha, jornalista e quase adulta com 23 anos. Um dia chega lá.
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3 comentários:

  1. Se amar for esnobar o diferente, eu não quero ser igual. Você tirou as palavras da boca daqueles que deveriam se calar. Incrível, incrível, incrível, Cah.

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  2. Sempre visito o blog e sempre me apaixono pelos textos, porém, esse de hoje me tocou de uma maneira diferente. Ao ler "Eu pensei que precisávamos ensinar às nossas crianças que uma menina cheia de vida morrer queimada em um ônibus é crime..." me deparei com a dor estampada nos jornais da minha cidade esses dias, já que sou de São Luís - MA. A mesma dor está estampada nos rostos da população, no medo de sair e não poder voltar para casa. Sinto medo antecipado pelos meus futuros filhos, o que eu direi para eles? Que o certo é matar? Não, não é. Infelizmente, muitas pessoas não se preocupam em passar aos seus filhos valores morais como o respeito, mas, na verdade, preocupam-se e limitam-se a enraizar em suas mentes preconceitos, que tornam-se quase impossíveis de ser "dissolvidos" em uma mente já adulta. Eu sinto muito por existirem pessoas que se preocupem com relacionamentos homoafetivos ao invés de um futuro digno para "as crianças".

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  3. Depois de ler só a parte do diálogo, eu pensei: "e como vão ficar a cabeça das crianças?"
    Esses dias uma senhora falou para uma menina de 2 anos que a minha tatuagem no pé era um "dodói". A pequena achou bonitinho, um passarinho no pé. "Ó..." e ouviu da avó "Não toca aí, é o dodói da titia..." Não que houvesse problema da menina tocar no meu pé, mas era uma tatuagem... UMA TATUAGEM! Ela provavelmente pensou "e como vai ficar a cabeça da criança?" Sim, porque a mesma ia achar normal algo que ELA (a senhora) abomina.
    Me surpreendeu foi a resposta da menininha quando ouviu que era o "dodói" da titia: "Não. É um 'pipiu'..."
    Fofa, né?
    Espero que as crianças não se contaminem por discriminação e preconceito de qualquer tipo e que possam dar respostas, simples, diretas e que desarmem todo o resto. :)

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