Liza: a intriga do vendedor de balas


Nunca entendi aquela menina. Passei anos da minha vida naquela esquina vendendo balas. Um dia avistei uma movimentação no prédio da frente. Uma mudança. Do carro saiu uma menina loira, por volta dos seus 10 anos de idade e um olhar cheio de curiosidade. Ela olhava com atenção para tudo, mas é quando olhava pra cima que os seus olhos brilhavam. Parecia que o céu envolvia uma espécie de ouro ou beleza a mais do que a normal. Com arco-íris ou sem, cinza ou azulão, chuvoso ou ensolarado, a menina olhava encantada para ele. Havia uma conexão entre os dois que percebi de imediato. Havia cumplicidade entre a menina e o céu.

O seu primeiro dia foi assim, do carro para casa, com uma parada para o céu. Ela andava como se pisasse em nuvens, mas procurando algo, precisando tatear as nuvens onde pisava.

Desde aquele dia, a menina virou a minha incompreensão. Eu, um velho já cansado de trabalhar para pagar o pouco que tinha, havia visto muitas coisas esses anos todos. Dos mais estranhos aos mais revoltados, doces ou afáveis. Pelos meus olhos quase cegos, a cidade inteira já havia passado. Mas ninguém tinha o olhar daquela menina.

Já se passaram oito meses. Durante esses dias todos que a vi, era sempre a mesma rotina. Perto do início da tarde ela saía com um balão em mãos. Um balão cheio, colorido, reluzente. E ficava ali, paradinha como se não houvesse carros ou pessoas transitando. Como se o mundo parasse para ver ela e o seu balão. A cor do balão mudava, mas era sempre vivo, e grande, segurado por um barbante pelas suas mãos ainda pequenas. Qual o sentido naquela cena? O que aqueles olhos captavam? O que aquela alma grande num corpo tão pequeno sentia do mundo? Durante oito meses a menina me intrigou. Ela não andava muito, ficava paradinha, sentava na porta do prédio vez ou outra e até tropeçava em algo ou alguém tamanha distração com o mundo real. Era isso: a menina não era do mundo real. Quem sabe fosse uma ilusão minha?

Sem mais dúvidas, fui atrás da minha curiosidade. Aproximei-me um dia da menina, que sequer deu-se conta da minha presença. Seus olhos eram um tanto claros e miravam o céu. Parecia um azul que refletia o céu em si. Ela todinha parecia refletir a imensidão do céu.

– Menina? – chamei.
– Oi? – ela respondeu parecendo sair de um transe.
– Qual o seu nome?
– Liza.
– É um lindo nome – elogiei. Mas diga, Liza, o que faz aqui olhando para o céu?
– Eu? Ah, eu gosto dele...
– E gostas por que, menina?
– Ele é imenso. – ela disse olhando novamente para ele com um brilho nos olhos.
– É verdade. E por que sempre carregas um balão?
– Ele voa.
– Querias voar como ele, Liza?
– Não moço, é mais do que isso.
– É?
– Ele é cheio, leve e voa.
– E o que isso significa?
– Eu queria ser como ele.
– E como és? – questionei curioso.
– Vazia, pesada e sem asas.

A resposta foi inesperada. Como podia brilhar tanto e se denominar de formas tão tristes?

– Menina... O que fizeram com você?
– Podaram-me, moço.
– Por quê? – perguntei incrédulo.
– “Quem muito voa, muito cai”. Foi o que me disseram.
– E acreditas nisso?
– Eu vivo caindo.

O interfone tocou. Chamaram a menina para subir. Ela foi, pelas escadas e com pernas pequenas, mas já aprendizes das quedas da vida. Com mãos que seguravam um balão de ar que lentamente murcharia ao calar do dia.

Esqueceram-se de contar o principal à menina: para voar e sonhar, nunca foi preciso sair do chão. O preenchimento estava em si.
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Autor: Camila Costa

Dizem que "essa guria tem uma caneta no lugar do coração". É gaúcha, jornalista e quase adulta com 23 anos. Um dia chega lá.
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