Quando eu não ia ficar...


Pelas frestas da janela não se via nem o sol nascendo. Ainda era tímido e a serração tomava conta do céu. Certamente poderiam passar dez mil almas que ninguém as veria. Pensei imediatamente: eu também poderia passar sem ser visto.

Olhei para o lado da cama e voltei a sentir aquele corpo próximo ao meu. Mais uma noite. Mais promessas, quereres, desejos que calam a razão. Mais uma vez, eu e você. Balancei a cabeça negativamente e me questionei: em que caminhos estranhos eu andava circulando? Porque o amor, você há de convir, é o caminho mais estranho de todos. Mas, amor? Não, não chegaria a isso. Ela falava "eu te amo" e eu a calava com um beijo. Ou retribuía? Não, eu a calava, com certeza!

A porta do quarto estava aberta. Ah, que convite tentador! Eu poderia sair sorrateiramente, ela não acordaria, iria para a minha casa e aproveitaria dos meus próprios lençóis sozinho, da forma que deveria ser em todas as manhãs. Nunca, jamais, fiquei na cama alheia. Fiquei. Agora quero fugir. Assustou-me não ter sido a primeira vez, não com ela. Assustou-me ter ficado mais uma noite. Mas o líbido nos faz isso, não faz? Faz sim, aposto que ele é o grande culpado da minha permanência. "Permanecer" é um campo perigoso de se pisar.

Com calma para não acordá-la, levantei-me. Sairia logo antes de dar de cara com o sol e ao ouvir a voz dela em algum telefone perguntando-me sobre o sumiço, seria óbvio: precisava trabalhar, embora fosse domingo. Quem sabe nos esquecêssemos. Sim, iríamos nos esquecer. Vesti a calça e passei encolhendo-me um pouco pela porta. Parei. Por algum  motivo pensei ter esquecido algo. Voltei àquela porta e olhei em volta. Estava com a camisa em uma mão e os sapatos na outra. O que faltava? O que eu esquecia? Não, eu não deveria estar esquecendo nada, afinal, não havia o que fosse meu naquele quarto. Porém, não consegui mais ir. Meus olhos voltaram-se para a cama e a olhei. Ela dormia sorrindo. Eu nunca havia visto uma mulher que adormecesse sorrindo ao meu lado. Nunca havia sequer reparado em algum sorriso. Lembrei da noite passada. Ela me fez contar histórias engraçadas da minha infância e rir de mim mesmo. Eu mal sabia o que era rir de mim mesmo com uma mão segurando a minha e dizendo em silêncio: vai, conte mais, eu gostei de saber de você. Ela gostou de saber de mim. E agora admito: eu também gostei de saber dela. Gostei de descobrir que ela havia perdido a irmã muito cedo e todos os quadros da casa eram obras das duas quando ainda crianças. Gostei de saber da sua dor e ser o olhar que a dizia: venha cá, eu posso limpar as suas lágrimas. Se gostei, por que vou-me embora? Por que, diabos, eu gostei?

Os meus olhos acharam um caderno no canto da sua mesa. Estava aberto. Achei que não faria mal adentrar novamente e apenas dar uma última olhada. Havia uma página branca escrita apenas com um versinho que tentei entender.

"“Deita nessa cama,
cala esse drama.
Em último caso,
me ama.”

A data era do dia anterior. Creio não ter sido o único a levantar cedo entre nós, mas ela, diferentemente de mim, não fugiu ou expulsou os resquícios da noite anterior. Voltou à cama. Virei-me para ela e analisei aquela pele branca, com cheiro de orvalho e acolhedora. Olhei para ela. Quis ficar. Quis experimentar como era não fugir e dividir o café da manhã. Após ele, eu poderia arrumar alguma outra desculpa menos fajuta e voltar a minha solidão rotineira como sempre gostei. Poderia ao menos dividir o café. Não, não era amor. Era apenas um conforto que achei para hoje, mesmo que semana passada também tenha achado tudo aquilo muito confortável também.

Deite-me novamente. Olhando para ela, de olhos fechados e sorriso discreto no rosto, dei voltas e mais voltas pensando no que mais me chamou atenção na primeira vez que a vi. Incrivelmente, ela não havia me visto. Eu era invisível para ela nos cinco primeiros minutos em que nos conhecemos através de amigos em comum. Provavelmente o meu orgulho ferido quis chamar a sua atenção. E, desde um mês para cá, provavelmente eu quis encher o meu ego, certo? Ou errado. Vai que... eu amo? Vai que ela me olha doce todos os dias por realmente me amar como os seus lábios tanto me contam? Eu ficaria. Quando tudo o que eu não pretendia era ficar, eu fiquei.

Eu nunca fui de ficar. Por ela, pelas risadas que me provoca e a calma com que lida com o meu medo de ficar, eu ficaria. Talvez ela sequer estivesse esperando achar-me ali pela manhã, mas dessa vez acharia, sorrindo como ela. Sorrindo junto a ela.

Ah, menina... Há coisas que eu não sei lidar. Eu te amo sem saber dizer. Eu te amo ficando.
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Autor: Camila Costa

Dizem que "essa guria tem uma caneta no lugar do coração". É gaúcha, jornalista e quase adulta com 23 anos. Um dia chega lá.
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