O que já não somos mais

Aquele que nos fez - ou os astros que colidiram, acredite você no que quiser - foi muito claro ao nos dar pele, coração, músculos e sangue. Ele nos queria humanos. Alguém nesse mundo queria ver humanidade em nós, desde o choro do bebê ao nascer até o sorriso dos pais ao vê-lo. De um extremo ao outro, somos humanos. Se alguém nos puxar, sentiremos na pele. Ela esticará, sentirá a dor, mas não será arrancada. Fica para sentirmos tudinho e virarmos uma bagagem daquilo que nos puxa e repuxa. É uma metáfora boa para entendermos todos aqueles puxões invisíveis que levamos diariamente.

Certa vez, escrevi que o verbo "viver" está diretamente ligado a outro: aguentar. Aqui, reafirmo a frase de outrora. Sim, estamos aqui para sermos felizes, termos a nossa cota de erros e acertos, acharmos um grande e romântico par, darmos uns tiros no escuro e agarrarmos uma ou outra boa oportunidade. E o "aguentar" entra muito assiduamente na história. Porque no meio disso tudo, desse viver todo atrapalhado e aos trancos e barrancos, vamos aguentando, e somente nós sabemos bem o que aguentamos - e teimamos em esconder debaixo de mil carapuças. Tudo com sorriso nos lábios. Sofrer é proibido! Reclamar é crime! Pedir dispensa da vida por um dia é horrendo!

Então, recorro ao mestre dos mestres, Freud: "Somos feitos de carne, mas temos que viver como se fôssemos de ferro". Não podemos demonstrar que a nossa pele é frágil, que ela também sofre arranhões, que o nosso olho seco também chora e o sorriso desmorona num instante só. Somos um bando de disfarçados fingindo não saber de nada. Nascemos humanos, mas é quase proibido ser um humano. O mundo atropela, você não acha mais cinto de segurança, não consegue atravessar seguramente na faixa de pedestre e nem adianta buzinarem: quando vê, já está embaixo do carro esperando o socorro. Mas pedir socorro nessa loucura toda também é proibido! Você é de ferro, não vá esquecer... Fraquejar é vergonhoso, já diriam os seus pais, colegas de trabalho, amigos de nariz empinado e propagandas de margarina pela televisão. Você é feliz, coloque isso na cabeça e engula a dor que te arranca pedaços por dentro.

Nas representações do dia a dia, o mais irônico somos nós mesmos, entonando discursos que não sabemos seguir. "Vá ser forte", "Aguente", "Pediu, levou", "Nem foi um baque tão grande assim". Lá dentro, no fundinho onde mal deixamos alguém chegar - onde mal vemos por medo do que iremos encontrar -, alguém, talvez uma parte sua já muito esquecida, pede apenas um colo para passar a noite, um ombro para descansar a cabeça, um dia para chorar as lágrimas atrasadas ou, sabe-se lá, apenas um ar puro e livre para respirar outra vez.

O quê somos? Talvez robôs. Considero essa uma boa tese. Somos uma lataria que vive quase automaticamente, ligada por fios e sem batimentos cardíacos. Sem carne para ver o sangue nos denunciar. Sem coração para olharmos com mais ternura e sem sonhos para nos desiludirmos de vez em quando.

Somos ferro, puro ferro. Ser ferro é mais fácil, não é? Ser humano, admitir o sofrimento e sorrir com uma simplicidade qualquer, é "babaca" demais, frágil demais, coisa pouca demais. Bonito é ser de ferro, porque viver não é mais para quem quer, é para quem aguenta. Humanos nós já não somos mais, creio que nunca fomos. Somos ferro, repito. Mas, veja só, o que acontece quando o ferro enferruja? O que importa é ser ferro... E que as reticências falem pelo resto.
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Autor: Camila Costa

Dizem que "essa guria tem uma caneta no lugar do coração". É gaúcha, jornalista e quase adulta com 23 anos. Um dia chega lá.
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