Os muros estão falando


Imagine a cena: você está parado no trânsito, tomado pelo estresse do congestionamento e da vida urbana quando olha pela janela e vê um poema de Carlos Drummond de Andrade escrito no muro ao seu lado. Você não sabe há quanto tempo aquele poema está ali, quem o pintou ou com que intuito, mas lê e relê, deixa aquelas palavras darem um novo significado ao seu dia e percebe pouco a pouco que os muros da cidade estão se transformando. Justamente para espalhar essa espécie de movimento, que vem tomando conta de várias cidades brasileiras e ao redor do mundo, o “olheosmuros” é um coletivo que vem ganhando força e espalhando nas redes sociais a nova forma de olhar a arte retratada nas ruas.

Iniciado em novembro de 2009, o coletivo – forma como é tratado pelos seus fundadores – é formado por dois paulistanos: Gabriela Serio e Eduardo Perazza de Medeiros. Os dois, que se conheceram no mesmo ano, são observadores e apaixonados natos das manifestações artísticas de rua, segundo os próprios, resolveram criar um twitter para divulgar fotos e endereços dos muros ao redor da cidade de São Paulo que possuíssem alguma expressão além do rotineiro cinza e os chamasse a refletir. “Os muros sempre fizeram parte de nossas vidas, desde crianças. Talvez o fato de morarmos em São Paulo tenha contribuído para isso, pois, por aqui, os muros são realmente muito bem aproveitados por quem quer que seja”, contam eles.

A iniciativa principal era divulgar através de fotografias postadas no perfil do twitter os muros de São Paulo que trouxessem a expressão de artistas e pessoas comuns que resolveram tornar a parte cinza da cidade mais útil e modificar os cenários, seja com desenhos, letras de música, poemas ou protestos conscientes. Para os fundadores do coletivo, “o olheosmuros abrange tudo quanto é manifestação artística, poética e filosófica em muros, calçadas, paredes, etc., com muito poucas restrições e sem embarcar na complexa polêmica sobre o que é arte e o que é vandalismo”. Ou seja, não se discute dentro disso o que é pichação, o que deveria estar nas galerias de artes ou páginas de livros e o que realmente as mensagens querem dizer: o importante é fazer cada cidadão deparar-se com um muro e vê-lo de outra forma, refletir, deixar a imagem fazer parte dele e criar a sua própria consciência acerca do que vê.

As paisagens urbanas estão fazendo parte do dia a dia das grandes e pequenas cidades cada vez mais. A correria e o estresse estão em pautas nos consultórios médicos, nos jornais e nas conversas de bares. A poesia, a música, as ilustrações em geral, vem para somar, chamar a atenção, expressar um amor ou somente lembrar que o silêncio das palavras nos muros também fala alto. É assim que a as cidades vem sofrendo alterações e se transformando em verdadeiras galerias a céu aberto, sendo o palco principal para a expressão se consolidar como um direito. Gabriela e Eduardo defendem esse novo “fenômeno” ao redor do mundo, que tenta amenizar a vida caótica e transtornada das cidades: “Acreditamos que, ao mesmo tempo em que as pessoas estão apressadas, na verdade elas estão correndo freneticamente atrás de algo que as façam sentirem-se vivas. E no momento que elas se deparam com um muro que tem um recado especialmente para elas, encontram, de certo modo, o que elas estavam procurando e automaticamente o ritmo diminui e volta ao normal. Os muros transmitem vida a quem os observa”.

O que inicialmente era um projeto de dois sonhadores está ganhando destaque. O perfil no twitter (@olheosmuros) já possui cerca de 1310 seguidores e virou também um importante e conhecido tumblr – homônimo ao twitter – com 10760 seguidores, além de uma página no facebook com 1805 likes. Fotos de calçadas, postes, portas e outros componentes urbanos também estão sendo divulgados. Gabriela e Eduardo acreditam muito na importância das redes sociais para poder contar com a colaboração dos seguidores, que são exatamente quem, hoje em dia, envia fotos do Brasil inteiro e até do exterior para serem divulgadas e levar ao conhecimento de mais pessoas uma nova visão do que as cerca diariamente. Os dois, porém, não faziam ideia do quão longe isso pudesse ir. “Não imaginávamos que esse projeto pudesse fazer tanto sucesso, ainda mais apenas na base do conteúdo e do boca a boca, sem nenhum tipo de publicidade, troca de links, parcerias ou algo que o valha”, confessam. Dizem ainda pensar que, se fosse há dez anos, não haveria tamanha repercussão e colaboração, pois faltaria o suporte que encontram nas atuais mídias sociais. Defendem que “o olheosmuros tem essa receptividade porque representa um convite para um novo modo de vida”.

Muitas pessoas não percebem que os muros estão querendo falar até se depararem com o “olheosmuros”. Conforme os fundadores, “para começar a mudar o olhar só é preciso de um chamariz, uma oportunidade”, e é exatamente isso que tentam fazer a partir do seu manifesto – pois também enxergam o coletivo como uma forma de manifesto particular ou social. A partir do momento em que o primeiro muro é visto de outra forma, está dando o pontapé inicial para todos os outros viraram um motivo de atenção maior, procurando sempre o próximo desenho, a próxima mensagem ou poema, vivendo em um estado constante de alerta e percepção da realidade. Assim, a população está entrando definitivamente na paisagem urbana, sendo parte pensante do seu universo e não apenas coadjuvante daquele espaço que ocupa. Os muros estão chamando atenção por terem algo a dizer, é uma forma ainda mais inovadora de mandar um recado: isso é tudo o que se pode perceber em uma mera volta pelas ruas de muitas cidades.

Como toda nova ideia provoca reações opostas, é preciso saber lidar com aqueles que talvez não enxerguem isso como uma forma de expressão artística, pacífica e coletiva, mas sim como uma pichação a mais. Entretanto, Gabriela e Eduardo contam que até agora se depararam sempre com uma boa aceitação da sociedade em geral, que parece entender as mudanças e importância de ser abrir os olhos de outras formas. “As pessoas que nos procuram parecem pensar dessa mesma forma. Mesmo as pessoas que nunca tiveram nenhum tipo de contato anterior com esse tipo de manifestação urbana, também conseguem entender tudo isso e passam a colaborar e a nos incentivar.” Citam renomados artistas de rua como Banksy e Os Gêmeos brasileiros (Otávio e Gustavo Pandolfo), que fazem sucesso mundo afora com o graffiti para lembrar que é possível ter sucesso nesse meio e atrair as pessoas a deixarem o preconceito de lado e refletirem muito mais sobre aquilo do qual estão diante numa avenida qualquer. A rua, como lembram os dois, é um lugar livre, perfeito para ser o espaço de cultural acessível a todos os tipos.

Exemplificando o novo significado que o coletivo vem ajudando a dar para os muros, a enfermeira Alessandra Castro, 43 anos, moradora de Belo Horizonte, conta que antes de descobrir o tumblr “olheosmuros”, possivelmente nunca havia reparado neles. Para Alessandra, sua primeira impressão “foi de um blog mostrando que existe arte onde antes existia apenas o nada”. Ela diz ser a favor desse tipo de pichação, onde não há prejuízos a decoração já existente, mas sim a pichação arte, de protesto, inteligente.

A participação da sociedade está sendo o que sustenta o coletivo. Embora as redes sociais tenham sido o início de toda a história, elas são sustentadas pelos seus seguidores diariamente. As fotos que hoje estão espalhadas pelos perfis de “olheosmuros”, são frutos da colaboração de pessoas que estão prestando atenção ao seu redor, renovando os seus olhares. Alessandra conta que o mais interessante foi ver como as pessoas estão se mobilizando para registrar tudo e se inclui no próprio argumento. “Eu mesma já me vi andando ou dentro do carro e olhando os muros atrás de algo interessante a ser fotografado.”

Após um grande período onde a arte parecia estar sucumbindo e cada vez mais distante das pessoas comuns que transitam pelas ruas e pertencem a todas as classes sociais, os muros surgem parecendo devolver a expressão para as ruas. Alessandra diz que “o mundo anda tão carente de poesia nos gestos, nos pensamentos, nas palavras, que o muro virou um papel cimentado onde palavras ou imagens brotam e expressam sentimentos da população”. O muro está virando uma parte do processo democrático e da livre expressão. Os pioneiros da ideia, Gabriela e Eduardo, ressaltam mais uma vez a boa receptividade que estão recebendo com o coletivo: “Pelas respostas que temos tido, temos certeza que as pessoas param para admirar e/ou refletir sobre o que veem nos muros”.

Desde o começo da humanidade que os muros fazem estão inseridos na forma social de se relacionar. Na antiguidade, por exemplo, as próprias cavernas eram o instrumento utilizado pelo homem para mandar recados, registrar sua passagem ou expressar livremente o que quer que tenha vivido. “Os muros sempre foram uma ferramenta, um instrumento de questionamento, ativismo, provocação, humor, pensamentos, reflexões e arte”, lembram os pioneiros do coletivo. Ocorre agora apenas um avanço na forma como a população se utiliza daquele espaço urbano. Em tempos de guerra, os muros poderiam ser uma forma de marcar territórios, expor símbolos e bandeiras ou protestar. Durante um longo tempo, eles foram sujando o visual das cidades com vandalismo e palavras ofensivas, que de nada acrescentavam. Agora estão sendo “repintados”. De acordo com os fundadores de “olheosmuros”, atualmente há uma mistura no que se é possível ver nos muros, havendo “pessoas de todos os tipos, cada um buscando algo diferente e usando os muros para se expressar”.

O conceito de arte está ligado às atividades humanas de manifestação com ordem estética ou comunicativa, acontecendo a partir de percepções, emoções e ideias de cada um. Logo, nunca foi tão correto afirmar que os muros estão inseridos definitivamente nos conceitos e expressões artísticos.

Haja vista o novo significado do cinza que passa a ter cor no meio urbano, Gabriela e Eduardo são precisos e fecham com classe o assunto: “Os muros transmitem vida a quem os observa”.
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Autor: Camila Costa

Dizem que "essa guria tem uma caneta no lugar do coração". É gaúcha, jornalista e quase adulta com 23 anos. Um dia chega lá.
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