Da minha covardia de ir à guerra

Tenho pesadelos todas as noites. Vejo homens com armas apontadas para mim, pedaços de corpos voando e, costumeiramente, surge uma fogueira que vira uma boca gigante e me engole para que eu queime até acordar em desespero. Porém, não há sérias mudanças na realidade quando abro os olhos. A guerra é um campo real de pesadelos.

Por que resolvi te escrever? Porque as poucas noites de sonho são com você. É quando acordo sorrindo. Um sorriso escancarado e muito incompreendido neste acampamento lotado de homens lutando por uma nação em discurso, mas por si mesmo em silêncio, tentando voltar inteiro ou ao menos vivo para os braços da família e dos amigos. Eu também tento voltar vivo, embora não tenha me despedido de você. Sou forte para estar na guerra, mas fraco para olhar nos teus olhos fundos e dizer que estava indo e não sabia se voltava. Ainda não sei se volto, mas gosto de imaginar que você está me esperando. Todos os dias a guerra me coloca frente a frente com o medo de perder os braços e não poder te abraçar numa cogitada volta, todos os dias eu me escondo e desvio de perigos por entre escombros de prédios e carcaças de carros deixados apodrecendo pelo caminho. Todos os dias eu me previno por você. E ao colocar a cabeça pesada no travesseiro, choro como se fosse acabar com a seca de um país inteiro.

O cenário da guerra é mais feio do que nas fotografias. Aqui o tiro não congela, sai sem dó ou piedade; a criança não chega ao colo da mãe, uma das duas cai sem vida antes do abraço; o soldado não salva a vida do companheiro que agoniza, morre-se após o clique. A guerra, que pode soar romântica nessas fotografias todas, é um poço de tudo o que não dá certo, não se concretiza como alegria. A fotografia mais bonita por esses lados, meu amor, é a sua guardada no bolso da minha mochila.

A rotina embrutece-me cada vez mais. Acordo cedo, durmo quase nunca - e, se durmo, acordo febril em pesadelos - e faço rondas pelas tristes e sombrias ruas dessa cidade perdida no meio de um Oriente Médio destruído. Ainda não encontrei nenhuma criança inocente o suficiente para me dar um sorriso. Ah, não tente imaginar o quanto estou louco para ver sorrisos! A maioria na minha tropa encontra consolo nos vícios: cigarro, garrafas de bebida roubadas em algum armazém abandonado e jogos de cartas que varam a madrugada. Ainda não entrei em nenhum deles, poupo minhas energias para... Ainda não sei bem para o que. Talvez seja para te ver.

Meu amor, eu sei que não dei adeus. Eu sou fraco, covarde, estúpido! Sou um soldado desarmado em frente a ti. Não há armas que me tornem forte quando a saudade vem me corroer e trazer lembranças dos teus traços marcados, muito marcados em mim e nesta minha memória desgraçada. Quero apenas te lembrar de lembrar de mim. Você promete que releva a raiva? Promete que me acolhe na chegada? Eu vou chegar, triste, com pesadelos e dando mais trabalho do que antes, mas chegarei. Promete que me sustenta de amor?

Escrevi por saber que não terás como responder. Ao fim de tudo, ainda que morto pela saudade, tenho medo das tuas respostas afiadas. Prefiro lembrar que me amavas e esperar que ainda me ames. Você me ama, não é? Concorde com a cabeça, sorria de canto e tudo bem, pode me colocar adjetivos feios, eu bem que mereço. Mas sorria e confirme.

Esta carta é para você saber que na guerra não há somente ódio. Eu, em meio a tiros e canhões, sigo te amando. E te amar é o meu melhor colete a prova de balas.
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Autor: Camila Costa

Dizem que "essa guria tem uma caneta no lugar do coração". É gaúcha, jornalista e quase adulta com 23 anos. Um dia chega lá.
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