Não é da saudade se acostumar

Era mais uma daquelas conversas de ônibus entre dois velhos amigos pelo que percebi. Era cedo também, meu sono mal havia despertado.

"- Nunca vou esquecer quando levei aquele puxão de orelhas da tua mãe!
- Ah, coitada da minha velha - a voz saiu com aquele jeito carinhoso, todo cheio de amor, lembranças e... saudade.
- É, coitada da velhinha, teve que me aturar!"

E caíram no riso. Mas no meio daquele riso e do meu sono escondido atrás da velha tática dos óculos escuros, enxerguei a saudade pelas lentes claras do óculos de grau daquela senhora com seus cabelos brancos e rugas que podem enganar, mas denunciavam lá os seus 70 anos. E quando vi aquela saudade perdida e estampada entre os risos das lembranças dos dois velhos amigos, de sobressalto "senti muito", como se sente em todas as mortes, até naquelas muito vivas, e depois me interrompi por um pensamento: "ah, mas pelo jeito como eles falam, ela parece ter morrido faz tempo. A filha deve ter se acostumado". Relembrei o olhar de saudade. Talvez ela não tenha se acostumado, embora já com seus 70 anos, embora tenham se passado dez dias ou dez anos: ela não havia se acostumado. Certa estava ela; errada estava eu.

Repensei a história e a lógica da saudade. Pensei, então, nas minhas saudades, mesmo que não se compare a minha idade com a dela, as minhas perdas com as dela e as nossas histórias de vida. Certamente, se sentássemos lado a lado para um bom bate-papo, eu levaria um "banho" dela de experiência. Percebi em instantes que não delongaram mais de duas quadras na distância percorrida pelo ônibus que, sim, também carrego aquele olhar de saudade, faça um dia, um ano ou dez. Não é da saudade se conformar em olhares, mesmo que venha a se conformar em palavras: "Passou, está passando, passará". Ninguém diz: "Ficou, está ficando, ficará". De vez em quando até dizemos, mas aí o personagem da história já nem está mais aqui, e parece que aí, somente aí, é bonito dizer que "ficará em eterna memória". O olhar pego em despreparo, numa conversa ônibus, quem sabe, é que nos denuncia. Mesmo que digam tanto que "saudade não tem tradução", seria mais importante dizer que ela tem rosto, bem marcado, por sinal.

Por que, afinal, ocorreu-me por alguns segundos que aquela senhora deveria ter se acostumado com a saudade? Por que fiquei sem entender aquele olhar de uma saudade tão recente mesmo imaginando que já fosse antiga? Experiência de vida, penso eu agora, não quer dizer que se tenha se aprendido a dizer "adeus". Mãe e filha, um ventre, um cordão umbilical, um sangue em comum ou não, uma vida... Por que teria a obrigação de se acostumar? Por ser tão experiente? Não, jamais.

E tudo o que consegui dizer a mim mesma não passa de uma conclusão de momento, solta na hora, que ainda nem pensei bem, mas posso sentir que é mais ou menos assim: saudade, às vezes, é nunca se acostumar.
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Autor: Camila Costa

Dizem que "essa guria tem uma caneta no lugar do coração". É gaúcha, jornalista e quase adulta com 23 anos. Um dia chega lá.
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